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domingo, 22 de junho de 2008

Poesia do cotidiano: a crônica, um gênero híbrido
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Camila Vieira
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Ao brincar com o útil e com o fútil, a crônica observa o banal a partir de seu valor extraordinário. Este gênero narrativo híbrido oscila entre a realidade e a imaginação, entre o jornalismo e a literatura. “A crônica traz essa narrativa próxima do dia-a-dia, olhando para banalidades que o jornalismo não tem método para capturar e, às vezes, acabam rotulando como "fait divers". A função da crônica é se apropriar de fatos que não são perceptíveis ou de fácil percepção”, explica o jornalista Wellington Pereira, autor do livro "Crônica: A arte do útil e do fútil (Editora Calandra, 2004) e coordenador do Grupo de Pesquisa sobre o Cotidiano do Jornalismo (Grupej), na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
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É como se o cronista procurasse fuçar os detalhes que passam despercebidos pelo exercício jornalístico. “Eu gosto de catar o mínimo e o escondido. Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto”, comentou Machado de Assis sobre seu ofício, na coluna "A Semana", na Gazeta de Notícias, em 1897. Promovendo um olhar estético sobre o cotidiano, a crônica resgata o imaginário cultural de um povo.
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Na origem da palavra, crônica significava “pôr em ordem cronológica”, ou seja, uma narrativa dos fatos ou registro de eventos de acordo com sua ordem temporal no curso da história. De acordo com o jornalista e pesquisador José Marques de Melo, a crônica constitui suas primeiras expressões escritas com raízes na história e na literatura.
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As primeiras crônicas seriam os grandes relatos históricos, feitos em ordem cronológica, desde as narrativas do historiador grego Heródoto até as cartas de Pero Vaz de Caminha. “A crônica histórica assume, portanto, o caráter de relato circunstanciado sobe feitos, cenários e personagens, a partir da observação do próprio narrador ou tomando como fonte de referência as informações coligidas junto a protagonistas ou testemunhas oculares”, afirma Melo. Nesse primeiro momento, a crônica era produzida por “espectadores privilegiados” - os viajantes, que escreviam impressões de paisagens e nativos.
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Da relação entre história e literatura, a crônica migra para o jornalismo, como gênero cultivado por escritores que ocupam as colunas da imprensa diária para relatar acontecimentos pessoais. Desde o século XIX, a imprensa européia e americana pratica a crônica como gênero jornalístico definido. “A crônica, no jornalismo hispano-americano, configura-se como um gênero informativo, enquanto no jornalismo luso-brasileiro adquire a fisionomia de um gênero tipicamente opinativo”, pontua José Marques de Melo. De acordo com ele, se na Espanha a crônica tem íntima vinculação com o noticiário e com a reportagem, ela assume seu caráter opinativo no jornal brasileiro, na fronteira entre a informação e a narração literária. “Ela não reconstitui o conjunto dos fatos que o jornal acolhe. Sua função é a de apreender-lhes o significado, ironizá-los ou vislumbrar a dimensão poética não explicitada pela teia jornalística convencional”, acrescenta Melo.
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Para Wellington Pereira, a crônica não descreve o cotidiano como faz o jornalismo. “Ela tem toda uma autonomia estética a partir da subjetividade do autor na interação com os fenômenos sociais. Da forma como vem sendo trabalhada no Brasil, a crônica amplia os referenciais do jornalismo, porque trabalha no nível da razão sensível e da estética, além de mostrar várias perspectivas da realidade observada”. O pesquisador argumenta que a crônica é da ordem da cultura e auto-organizadora, enquanto o jornalismo é cumulativo. “O jornalismo impresso dá conta dessa realidade a partir de uma definição fechada do que é ou não verdade. A crônica não trabalha com categorias de ancoragem de fatos”.
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