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sexta-feira, 11 de abril de 2008

Jornalismo cultural como exercício crítico
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Célia Mota
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Quando se fala em Jornalismo Cultural me vem à mente uma frase de Roland Barthes: “a crítica não é uma homenagem à verdade do passado e nem à verdade do outro, mas simplesmente uma construção inteligível do nosso tempo”. Isto porque a questão fundamental do chamado Jornalismo Cultural é a do exercício crítico por excelência. Uma sociedade sem crítica é uma sociedade morta e, ao abrir mão desse exercício, os jornalistas se tornam apenas porta-vozes da indústria cultural e seus sub-produtos.
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Por que falar de crítica a jornalistas culturais? Porque a eles cabe decidir sobre dois procedimentos: o do julgamento do valor qualitativo de um produto ou bem cultural ou o do julgamento do valor de mercado. Sempre é bom lembrar que vivemos em tempos pós-modernos, onde se constata o abandono dos programas ordenadores, legitimadores, atribuidores de valores estéticos e culturais. Expandem-se os sistemas técnicos incontroláveis, o império dos efeitos visuais sobre a narrativa. Com isso, troca-se o sujeito emancipador (dotado de razão, de senso estético e transformador) pelo sujeito falsamente emancipado pelas novas tecnologias.
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Não queremos considerar aqui como jornalismo cultural às notinhas de shows, as agendas sobre os espetáculos diários oferecidos à população em nossas cidades, os releases de filmes, de peças de teatro ou de exposições,que tomam conta dos nossos chamados Cadernos B. O jornalismo cultural, no meu entender, coloca em debate idéias, sem deixar de lado a crítica aos espetáculos ou aos produtos de arte, que são uma forma de refletir sobre o mundo em que vivemos.
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Um ponto de partida para o exercício crítico,ou do criticismo, nos leva à seguinte questão: é a crítica uma forma de explicação ou um pretexto para uma interpretação? No primeiro caso, busca-se tornar explícito ou explicitar em detalhes uma determinada obra cultural. Como a origem latina de “explicar” sugere, é expor, revelar. Ou seja, mostrar para o leitor o que ele não vê num primeiro olhar. Pode ser a análise de um romance,de um filme, um CD de rock ou um show musical. Um livro não fala de si mesmo. Um CD se revela pelo conjunto das músicas escolhidas pelo autor. Então, o que cabe ao jornalista cultural é a tarefa de debruçar especialmente sobre o que a obra não diz. Seus silêncios, seu interdiscurso, ou seja, a que outros textos, músicas, filmes, a obra remete?
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Explicar uma obra significa também mergulhar no processo criativo do seu autor. Que universo é este, em que mundo imaginário o autor vive? Como expressa este mundo através dos seus personagens, de representações culturais de sua própria realidade? Não é, portanto, um julgamento do autor ou da obra, mas um exercício de tornar visível o que é invisível, transformar em linguagem o que é silêncio, revelar o que não foi dito. É importante lembrar que a explicação de um produto cultural não se resume a uma descrição minuciosa ou ligeira do seu conteúdo, como se lê em releases de filmes, algumas vezes transcritos em jornais ou revistas. Não é, igualmente, situar a obra numa longa descrição histórica para caracterizá-la como parte de um movimento, seja literário, seja fílmico. Desde a crítica literária à crítica de cinema hoje, a tentação de enquadrar a obra num determinado ciclo é bem grande. Ou é um “romance realista”, ou é um “filme a la Tarantino”, ou é um “remake dos anos 70”, etc. Não importa a nomenclatura, mas sim o processo classificatório, a necessidade do enquadramento.
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A outra questão é a da crítica como uma interpretação. É quase um exercício hermenêutico de criarnovos significados sobre um determinado produto cultural que nem sempre correspondem aos que o autor quis representar. Com isso, o crítico praticamente constrói uma nova obra – ou quase – à sombra ou à margem da obra original que pretendeu examinar. O grande problema deste tipo de criticismo é que o jornalista cultural pode deixar de lado o universo do autor, sua visão de mundo, seus referentes sócio-históricos, em troca de uma leitura própria da obra. Lembro-me de uma análise feita por uma pesquisadora sobre a MPB dos anos 70. O trabalho, feito naquela época, era uma crítica contundente à alienação produzida pelos músicos de então, cujas canções e letras não refletiam a realidade da ditadura militar em vigor no país. Esta pesquisa, analisada em sala de aula, quase trinta anos depois, provocou leituras diversas que, em geral, consideraram exagerado o trabalho original. É sempre difícil ler uma obra com olhos de hoje, ou olhos de um outro momento histórico. Mais ainda, interpretar uma obra com olhos de outra cultura.
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Então, como exercer a atividade crítica no jornalismo cultural? Como resgatar o sentido da crítica na sociedade atual? Em primeiro lugar, percebendo que a cultura é constitutiva da nossa identidade. Como diz Geertz, cultura são as histórias que contamos sobre nós mesmos. É no aqui, no nosso espaço de constituição de significados, que se constrói a memória cultural do país. Cabe ao jornalista debater valores culturais, definir critérios mínimos de apreciação de bens culturais e midiáticos, sem se submeter a critérios de mercados.
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Como fazer isso? Em primeiro lugar, recuperando o espaço da crítica, hoje tornada resenha. E a partir daí, recuperando valores culturais, pelo que significam de processos de construção de identidade. Colocando obras de arte em debate, e com isso, provocando uma maior reflexão sobre seus conteúdos e sobre os valores que põem em circulação. O exercício crítico, aliado a uma maior informação e estudo por parte dos jornalistas dos chamados cadernos B ou C, é que vai permitir um outro olhar sobre estes produtos. E uma reflexão de caráter emancipador sobre esta nossa pós-modernidade, em que valores ocidental-americanos ou oriental-nipônicos estão sempre a confrontar nossas próprias culturas locais.

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