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terça-feira, 15 de abril de 2008

A eloqüência aprisionante da TV brasileira
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Patrícia D’Abreu (*)
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A produção de sentido na TV, que se dá de forma unilateral, impõe ao telespectador a unificação de diferentes lógicas na construção de uma visão unívoca do mundo. Isto revela a estrutura coercitiva que caracteriza o exercício de poder pela televisão. A finalidade das abordagens das TVs aberta e fechada é a atribuição de sentido ordenador que produza enunciados eficazes. A televisão tautologicamente enquadra o real para enunciar e estabelecer um sentido aprisionante. As coberturas dos episódios recentes da guerra no Iraque e do assassinato de Tim Lopes evidenciam isso.
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Como em toda prática discursiva, a TV produz sentido, o que a caracteriza como instrumento de interpretação da realidade. Se abordarmos a cultura como um conceito discursivo, podemos entender por que a atitude privada da ação coletiva que é assistir à televisão é tão comumente considerada como pertencente à esfera cultural. O uso teórico do conceito de cultura mostra a incidência freqüente de uma noção associada à idéia de um campo normativo que enfatiza cultura como um sistema geral, uma operação semiótica através da qual um julgamento social de valor se torna um método intelectual generalizado que possibilita a apreensão do real através da formulação de verdades universais. Em todos esses sistemas universalizantes (da “cultura animi” à antropologia estrutural), as definições de cultura remetem ao relacionamento com o sentido, que filosoficamente entendido como a condição necessária à existência de significações ou conceitos atuantes na organização social (...) possibilita o estabelecimento de diferenças. Em termos mais gerais, o sentido é uma marca de limites, a marca de um possível do qual não se sai. (SODRÉ: 1983, p. 44)
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Na TV, o cúmulo (do latim cumulus/cumulata, amontoado, abundância, auge) do sentido está na sensação de que o mundo inteiro e tudo o que está nele acontece e aparece diante de uma testemunha (virtual) que recebe o nome de telespectador. Este cúmulo do sentido encontra eco no que Muniz Sodré chama de “perversão simbólica do Ocidente”: a cultura de sentido finalístico, a tentativa de capturar o movimento agonístico da linguagem pela atribuição de sentido a tudo, o que faz com que o próprio sentido possa ser algo inteligível. Esta forma simbólica (pervertida e perversa) faz com que a percepção imediata da realidade individual, social e de construção do mundo se dê pela captura e não pelo acolhimento das diferenças que promove a dinâmica mediadora entre os homens; abre caminho para que a tela da televisão passe a ter uma derradeira função epistemológica.
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Além do ordenamento, a (rica) indeterminação do sentido faz com que a experiência de relacionamento com o real (e, paralelamente, a cultura) demande a necessidade de uma forma de coerência das representações. Surge aí a ideologia como pólo irradiador de decisões essenciais sobre axiomas da realidade. Na ideologia, a forma de coerência se utiliza da unidade lógica para demonstrar ao indivíduo que o mundo é transparente à razão universal. Dessa forma, a dimensão ideológica procura constituir a consciência do indivíduo de tal maneira que se resolvam imaginariamente as diferenças, as perigosas indeterminações de sentido, que se evite a sedução - o desvio do caminho da verdade. (SODRÉ: 1983, p. 67)
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Em sua análise sobre as mutações culturais na contemporaneidade, Muniz Sodré diz que (...) o poder não se define pela capacidade intrínseca de realizar ou fazer, mas pela força extrínseca de mandar fazer (...) o poder busca fazer crer que seu lugar é suficientemente real para determinar o que deve ser considerado real ou irreal, incluído ou excluído, admitido ou negado. Nesse nível, poderoso é aquele que detém as aparências de controle da relação entre o determinado e o indeterminado. Assim, além do sentido de “fazer”, a palavra “poder” inscreve também o de “magia”. Todo poder é de fato “mágico”, no sentido de que se empenha em convencer os sujeitos de sua absoluta realidade. (SODRÉ: 1996, p. 59-60)
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Não há dúvida de que, em relação à televisão brasileira, há uma clara delegação de controle social operada pelo público-povo e pelas próprias organizações do Estado em relação às emissoras abertas e aos canais fechados. Esta delegação pode ser verificada não só na veiculação de programas como Linha Direta (Rede Globo), Repórter Cidadão (Rede TV!), Pensando em Você (TVE) e FBI Files (Discovery Channel), como também em episódios de alta midiaticidade como os “casos” Tim Lopes, Von Richthofen e Pedrinho na TV aberta e “11 de setembro” e “guerra no Iraque” na TV fechada (especialmente nos canais da rede CNN). É preciso, porém, fazer uma diferenciação da noção de poder operada nesses exemplos.
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Nos programas acima citados, pode parecer, à primeira vista, que a TV teria o poder de polícia, o poder jurídico, o poder de construção/execução de cidadania ou o poder de exteriorizar as táticas de vigilância social quando, na verdade, seu poder é o de pautar, direcionar e mesmo determinar quais devem ser as ações policiais, jurídicas, cidadãs (no caso da TV aberta) e de memória exteriorizada (no caso da TV fechada): é um poder “extrínseco” e “mágico”. O exercício desse poder funciona: foragidos são presos, leis são debatidas, acessos a direitos mínimos são efetuados e arquivos (autorizados) são coletivizados. Mas celas, plenários, favelas e memória coletiva só cabem na tela como figuras, não como objetos concretos ou caminhos de busca percorridos. Nela, o que se aprisiona, se legisla, se constrói e se coletiviza é mesmo o sentido. Um sentido que, enquadrado, busca organizar simbolicamente o caos concreto do vivido nas transgressões, obediências, riquezas, misérias e memórias do (inesperado) ser humano.
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(*) Patrícia D’Abreu é jornalista, mestre em Comunicação e Cultura.

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