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quarta-feira, 10 de março de 2010

O rádio como perspectiva acústica da cidade
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Cida Golin
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Linguagem temporal, o rádio mantém um vínculo visceral com a cidade. Reflete sua sonoridade, funciona como um relógio das rotinas diárias, organiza e reproduz os ciclos e as temporalidades locais: o despertar para o trabalho, a conversa descompromissada na hora do cafezinho, a hora do rush, a solidão do insone na madrugada. Cada emissora enquadra o ouvinte em um estilo próprio de pontuação e ritmo. Funciona, na perspectiva de Schafer, como uma espécie de parede, massa sonora comprimida, feita de repetições, envolvendo o sujeito na ausência do silêncio.
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No momento em que o rádio se redirecionou, principalmente a partir dos anos 1960, deixando a sala de visitas e o entretenimento para a televisão, passou cada vez mais a contemplar notícias e prestação de serviços locais, aproximando-se da cultura da comunidade onde opera. Qualquer manual para iniciantes recomenda que a pauta do veículo privilegie temas próximos, critério de relevância: aquilo que se vê e se conversa na rua, uma informação urgente, um acidente de trânsito, um assalto, o buraco da rua, as reivindicações dos bairros.
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Nesse sentido, passa a ser um espelho da cidade onde está inserido, traduzindo na linguagem cíclica e temporal o ritmo cotidiano. A programação em fluxo, tendência de importantes emissoras de radiojornalismo, corrobora a metrópole contemporânea como o lugar do movimento incessante, da multidão, do deslocamento em vias expressas. A programação radiofônica não somente mimetiza a aceleração temporal como ajuda a propagá-la na rapidez da fala, na ausência de pausas ou silêncios, no ritmo incessante da velocidade. No entanto, em cidades pequenas, ao contrário da pressa e do trânsito caótico, o obituário e informações sobre baixas e internações hospitalares ganham visibilidade e tratamento de serviço ou notícia.
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O rádio mantém uma profunda relação com o espaço social mais próximo, preocupa-se com o entorno, e busca situar-se nele; promove a inter-relação de espaços a partir do local; cria um pulsar rítmico do cotidiano, sincronizando pelo tempo as atividades de uma comunidade. Como observa Canclini, ao se pautar pelas experiências diárias da cidade, os meios eletrônicos de comunicação simulam superar e integrar um imaginário urbano desagregado, sobretudo em grandes centros. Logo, estar informado é participar de uma comunidade.
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Lewis Munford sublinha o quanto a cidade, na sua origem, deve à aldeia as relações de ordem, estabilidade e vizinhança no compartilhamento do ritmo vital entre os que nascem, trabalham, casam, agonizam e morrem. As cidades antigas, por exemplo, não cresciam além dos limites físicos do corpo humano, das distâncias das caminhadas ou da audição. “Na Idade Média, ficar dentro do alcance dos sinos de Bow definia os limites da City de Londres”. Antes da Revolução Industrial, o trabalho estava associado ao ritmo da canção (cantos dos marinheiros, dos camponeses e das oficinas) e aos sons da rua, às vozes dos ambulantes, dos pregoeiros, dos mendigos ou dos músicos à margem.
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Dentro da luta pela organização e racionalização burguesa do espaço público, aos poucos, a voz (em especial dos grupos menos favorecidos) foi sendo abafada, ao contrário de sons institucionais como o da igreja ou dos motores que rompiam o silêncio comum. Na categoria dos sons comunitários, que precisam ser fortes para se destacar no ambiente, a sirene (primeiro da fábrica, depois do automóvel) tomou o lugar do sino na evolução do espaço urbano. O futurismo, ao participar da construção da cidade moderna, poetizou o ruído, fascinado pela estridência do metal, pela sonoridade do automóvel, das ferrovias ou das multidões.
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FONTE: A Expressão Radiofônica de uma Cartografia Sonora:
estudo da série Porto Alegre,
paisagens sonoras.
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