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segunda-feira, 22 de março de 2010

Juventude brasileira: tradição e modernidade (parte 2)
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Hebe Signorini Gonçalves (*)
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No Brasil, a família - e a cadeia de relações que se estrutura em torno dela - ainda é uma forte referência da subjetividade, sobretudo entre as camadas mais pobres da população. As cadeias migratórias articulam-se em torno de relações de parentesco e amizade tanto no que diz respeito à busca pelo trabalho como na eleição dos locais de moradia. Admitindo que os laços de parentesco falam da tradição cultural e contrapõem-se aos padrões pós-modernos, seria preciso admitir aqui uma permanência da tradição, tornando tensos os apelos da modernidade.
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Ao descrever a vida urbana, referindo-se ao município de Curitiba, Sanchez (2001) destaca sua multiplicidade irredutível de sentidos. Lendo a cidade como um território de disputas simbólicas, de jogos e discursos em permanente confronto, a autora marca a impossibilidade de reduzi-la, e a seus cidadãos, a uma única definição. Do mesmo modo, Castro descreve a urbe como a geografia do múltiplo e do variado, lugar que acolhe uma "coletividade de indivíduos singulares na qual todos têm o direito de buscarem suas vias de expressão pessoal".
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Referindo-se mais diretamente às vivências da juventude, Pais (2003) acentua o cruzamento das trajetórias de vida que a cidade proporciona, sucessivamente aproximando e afastando estranhos, tecendo cadeias de relações que ele chama de interconectividade típica da juventude. Mas se é verdade que o jovem experimenta, circula, troca de lugares e de afetos, é preciso reconhecer também que ele organiza essas trocas segundo a lógica própria com que persegue os sentidos na cidade. Como lembra Carrano: até mesmo nos grupos com forte identificação gregária, onde as trajetórias dos sujeitos se cruzam intensamente, existem processos que fazem com que os seus membros se distanciem por outras redes de significados, configurando as variadas possibilidades de vínculos sociais que podem ser tramados nas cidades.
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Os centros urbanos brasileiros, marcados pelas enormes distâncias sociais, põem em contato territórios informados pelo simbólico e permeados pelo econômico. Nesse particular, nossa geografia urbana impõe experiências que diferem de qualquer cidade das sociedades centrais. A disparidade de renda, a presença ou ausência das benfeitorias sociais e a maior ou menor dificuldade de acesso às benesses são os elementos mais visíveis da rede de significados que o jovem deve aprender a decodificar. A convivência com o outro, na interconectividade das histórias vividas, mostra que uns têm acesso amplo ao conjunto de benfeitorias sociais, outros renunciam a elas e alguns se apropriam daquelas que lhes parecem indispensáveis. Assim, o jovem é chamado a construir ativamente as redes de significado, sob pena de sucumbir aos apelos do estranho e aos perigos da cidade. Nessa posição, que é necessariamente ativa, há de haver um nucleamento de sentidos passível de identificação. Como o jovem mapeia os territórios urbanos e com base em que premissas se move entre eles?
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A visibilidade mais ou menos explícita da distância entre os diversos grupos sociais que convivem no meio urbano - e as formas como essas distâncias são preenchidas - não é um problema menor, já que toca a temática da regulação. Castro (2001) argumenta que a ocupação da cidade por crianças e jovens só é bem-vinda quando feita nos limites da ordem prevista pelo adulto, que submete e controla o ir-e-vir do jovem pelas cidades. Para a autora, a regulação também contém seus excessos, e ela interpreta como agressão e violência o que é busca de sentido e vontade de participação.
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A pichação, com a qual o jovem quer imprimir sua marca pessoal às ruas da cidade, e a zoação, o desafio do outro por meio da galhofa e do desacato, são exemplos de atitudes comuns aos jovens, que, se contêm um viés de agressão, são também formas de reivindicação: "[...] o chamamento do outro, para que preste atenção e se volte para aquele que zoa, que reclame, que tome uma posição e que ponha limites. Na verdade, zoar pode se tornar uma forma desesperada e última de estabelecer vínculo".
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Esse atravessamento de sentidos, em que o desejo de diferenciação do jovem se confronta com os anseios de regulação e controle próprios da ordem social instituída e adulta, ganha contornos típicos numa sociedade em que a regulação se exerce a partir do doméstico. Diante da tibieza das instituições, cabe à família, e àqueles que lhe são próximos, promover em primeira instância a regulação da conduta. Como a família dará conta dessa função reguladora cujo alcance deve exceder o doméstico?
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(*) Doutora em Psicologia e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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FONTE: http://juventudesulamericanas.org.br
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