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domingo, 15 de agosto de 2010

Cinema e consciência no Brasil atual
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José Carlos Asbeg
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Se os olhos são a janela da alma, o cinema é a janela da consciência. Uma sala de cinema é como um livro, um portal para um mundo novo de compreensões. Criar cinemas é criar espaços de consciência desde as coisas mais banais até as observações mais complexas da vida, do nosso cotidiano, do nosso país, possibilidades de percepção do mundo, crescimento humano. Quando a sala escurece, o filme nos ilumina. A experiência coletiva de ir ao cinema é um dos rituais culturais mais marcantes de todo o século XX, o século de consolidação da imagem como o mais poderoso instrumento de informação.
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A proposta governamental de novas salas de exibição por todo o país, em cidades que tenham entre vinte mil e cem mil habitantes é um primeiro esforço para levar a informação e a cultura cinematográfica a milhões de excluídos. Que o Brasil tem um déficit alarmante de salas de cinema é sabido e lamentado há anos. Há anos, também, vemos cinemas de rua virar igrejas ou mercadinhos de bairros - na verdade, não há quase diferença entre um e outro. Os cinemas hoje praticamente se
escondem em centros comerciais.
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Portanto, a notícia é animadora, mas traz vários pontos de interrogação. É preciso desembrulhar o pacote da ação ministerial, que ainda deixa margem a dúvidas. Ao lado da boa intenção muitas vezes vem a ação que pode acabar dando em nada. Trata-se de uma excelente oportunidade para se discutir mais amplamente a indústria do cinema no Brasil. Seria uma pena perder mais esta chance. O programa pode apontar para uma necessária renovação nas relações do setor cinematográfico do país. Vamos a alguns pontos:
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01. Muito bom que as cidades pequenas ou do interior do País recebam este incentivo, mas porque os grandes bairros periféricos de megalópoles como Rio e São Paulo, Recife, não recebam a mesma atenção? Os moradores dessas regiões tem que se deslocar até áreas distantes para ver um filme. As periferias precisam ser contempladas também, neste ou em outro programa, urgentemente.
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02. Estas novas salas, fala-se em 1.177, serão construídas com dinheiro público, ou seja, do povo brasileiro, portanto, é obrigatório que elas sejam um espaço para o cinema brasileiro e para todo o cinema brasileiro. Pode parecer redundante, mas não é. O novo cinema comercial brasileiro, que este ano bate recordes de público, é uma ponta de lança na reconquista do espectador nacional. Isso é excelente. Mas há outras vertentes do cinema brasileiro que precisam de espaço, como os filmes que não recebem lançamentos tão ruidosos na mídia e os documentários, que vasculham a história, a contemporaneidade, a cultura e até mesmo a alma do Brasil. Estes filmes, a grande maioria de ótima qualidade técnica e verdadeiras declarações de amor ao nosso país, precisam ser igualmente contemplados pelas novas salas.
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03. Já que se trata de dinheiro público, com obrigação das prefeituras de concederem isenção de tributos aos novos exibidores, é preciso que estes cinemas não sejam mais um local privilegiado do cinema americano dentro do país. Sem nacionalismo rastaquera, mas não podemos dar de mão beijada milhões de novos espectadores à indústria Hollywoodiana, que nos impõe um dumping - aliás, por que esse dumping nunca é denunciado? Por que as autoridades fiscais não cuidam mais disso? - que nos enfia goela abaixo filmes que cultuam a violência e o heroísmo individual como formas de ação social e que em nada contribuem para a formação cultural do público brasileiro. Pelo contrário, cada vez mais nos afastamos de nossos valores, ou seja, nos afastamos de nós mesmos para sermos mais americanos do norte.
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04. A ação federal prevê que a prefeitura da cidade conceda isenção fiscal, escolha um empresário que construirá e administrará a sala, e consiga um deputado de seu estado para fazer a emenda ao orçamento e trazer para a cidade 1 milhão e 500 mil reais, custo determinado de cada sala. O que determinou a escolha deste caminho? Por que a intermediação política? Quem fiscalizará quem? Como foi calculado o custo de cada cinema? Estamos falando de 1 bilhão 765 milhões de reais que serão movimentados. É um bocado de dinheiro. Se dinheiro na mão é vendaval, como canta Paulinho da Viola, dinheiro público é água, evapora num segundo no calor tropical.
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05. Um dos grandes nós da cadeia cinematográfica brasileira é a divisão da renda de bilheteria, o que leva os produtores a buscar remuneração quase que exclusivamente na fase de produção dos filmes e não no retorno de bilheteria, como acontece com qualquer outro produto oferecido ao mercado consumidor, Em geral os exibidores ficam com metade da arrecadação do filme. È exorbitante, altamente injusto. Em seguida, os distribuidores retiram suas parcelas e recuperam os gastos que informam ter tido com lançamento. Esses percentuais chegam depois dos impostos, cobrados em cascata - do exibidor, do distribuidor e, por fim do produtor. Quando o produtor vai receber sua parte, é uma raspinha de nada, logo ele, que empreendeu, que gerou aquele produto, que movimentou a indústria, deu trabalho a centenas de profissionais, ocupou laboratórios e arquivos. Essa relação é um castigo para os produtores e um ciclo vicioso sem saída. Se os produtores não conseguem remuneração de bilheteria, buscam nos orçamentos da produção a saída para seus bolsos, o que é uma inversão do princípio capitalista que rege as relações comerciais no Brasil e no mundo ocidental. Na verdade, os produtores brasileiros são completamente desesperançados da venda de seus filmes. Quando acontece um sucesso (ainda bem) ou ele é exceção à regra ou vem num movimento de grife, caso hoje das películas chanceladas pela Globo Filmes. As novas salas podem ajudar a mudar esta relação.
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06. A exibição digital já é uma realidade no país e traz a vantagem de baratear enormemente custos para toda a cadeia cinematográfica, desde a produção, passando pelo lançamento até a exibição. Estas novas salas precisam obrigatoriamente ser digitais e não mais analógicas, porque trazem duas vantagens imediatas: primeiro, e importantíssimo, o ingresso pode e deve ser mais barato, porque toda a cadeia tem custos menores, o que possibilita o acesso do cinema a um maior número de espectadores; segundo, e não menos importante, o cinema digital impõe muito menos dano ao meio ambiente - ver trabalhos assinados por Adailton Medeiros, do Ponto Cine, no Rio de Janeiro.
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07. É preciso abrir a construção das novas salas para grupos de reconhecida capacidade exibidora e que se dedicam de fato à formação de platéia para o cinema brasileiro e para o cinema de consciência, como, por exemplo, o Ponto Cine e o Cine Bancários, de Porto Alegre. São salas que se dedicam a um trabalho sério, onde predominam as produções nacionais. São dois exemplos, dois espaços aliados dos produtores, duas salas de excelente qualidade técnica e de enorme preocupação com o que é oferecido ao público. Se o objetivo da medida é apoiar o setor exibidor, que os circuitos alternativos de comprovada competência sejam ouvidos e tenham a oportunidade de participar deste esforço nacional.
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08. As novas salas precisam ser, por fim, blindadas da picaretagem imobiliária. Não podem ser construídas e logo depois transformadas em igrejas, que trazem uma proposta inteiramente oposta à do cinema: um filme é uma viagem da consciência; a religião comercializada dos novos cultos é o pesadelo do infortúnio castigado. Os exibidores-donos dessas salas não poderão vender ou demolir os imóveis nem daqui a cinqüenta anos e quando o fizerem que tenham a obrigação de construir um novo cinema para comunidade que pagou pela construção da que foi demolida ou vendida.
Que venham as novas salas, mas que sejam para abrir corações e mentes, desde a proposta de construção, passando por uma nova relação remunerativa do tripé cinematográfico, até o encontro do cinema com o público.

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