Uma mídia livre, em todos os sentidos
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Wilson da Costa Bueno (*)
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Não é novidade para ninguém que a mídia tem seus vínculos e compromissos e talvez seja razoável imaginar que as coisas serão sempre assim, visto que determinadas pessoas e grupos normalmente se mobilizam para defender apenas seus interesses e manter seus privilégios. Os veículos de imprensa têm donos e, no Brasil, eles se identificam (ou são reféns ou porta-vozes) dos que detêm o poder político e econômico e que, secularmente, andam ditando as regras do jogo (que, convenhamos, não é nada democrático). Ignorar este fato é mergulhar numa santa ingenuidade.
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A maioria das emissoras de rádio nesse país está em mãos de representantes destes grupos (e seus laranjas eletrônicos espalhados por todo o lugar) e, por isso, não cumprem o papel que está reservado aos órgãos efetivamente de interesse público. A televisão (aberta ou fechada) está a mercê dos monopólios, sujeitando os cidadãos a um discurso tedioso, enjoativo, mas competente, em favor dos que se postam lá em cima, buscando recorrentemente obter benesses de empresários e governantes.
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As concessões na área da mídia constituem uma verdadeira "farra do boi" e contemplam invariavelmente os amigos dos governantes de plantão, contribuindo para aumentar o desequilíbrio entre os que já possuem tudo (ou quase tudo porque estão pretendendo sempre avançar mais sobre o nosso bolso) e os que se esfolam para sobreviver. Temos assistido, com tristeza mas sem surpresa, a disputa Sky x Abril e fica mais do que evidente nos comunicados emitidos pelos litigantes (no fundo, parceiros dos privilégios midiáticos brasileiros) que a única coisa que realmente não interessa é o telespectador, tido apenas como aquele que, ao final do processo, vai pagar a conta. Briga de cachorro grande, como a gente diz no interior, para ver quem fica com a presa, que somos todos nós.
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Nesse contexto, é fundamental louvar a realização, no mês passado, no Rio de Janeiro, do "I Fórum de Mídia Livre", um movimento que se propõe a enfrentar, com coragem e competência, o cenário desfavorável, injusto, antidemocrático que caracteriza a mídia brasileira contemporânea, onde menos de uma dezena de famílias domina o que seus súditos cinicamente costumam chamar de "liberdade de expressão". O encontro, que teve a presença de centenas de "midialivristas", aprovou uma série de propostas (um autêntico programa de luta) contra os monopólios e que não incluem apenas estratégias e ações para denunciar os abusos dos chamados "barões da mídia" (a expressão é deles e faz todo sentido), mas empenho (e pressão) junto aos governantes visando a uma maior democratização da verba publicitária que se origina do governo (o maior anunciante do País).
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Como sabemos, apesar do discurso demagógico de esquerda, os monopólios (Globo, Abril, etc.) continuam sendo aquinhoados com a verba oficial, com a justificativa de que se deve levar em conta o "custo por mil" e outros indicadores hipócritas e injustos que determinam penetração da audiência e o retorno dos investimentos. As novas tecnologias (sites, blogs, grupos de discussão etc) favorecem o fortalecimento da mídia livre e é chegado o momento de um enfrentamento necessário, com parcerias estratégicas com sindicatos não peleguistas (esse trânsito de líderes sindicais no Planalto não cheira bem), movimentos sociais autênticos (o que tem de lutas de fachada é uma beleza!), segmentos democráticos da sociedade civil, estudantes e professores de Jornalismo e sobretudo profissionais de imprensa.
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O fundamental é que a mídia se mantenha independente de verdade e não cair na sedução, comum a determinadas ONGs, de comer na mão de empresas privadas (tipo cooperativas de favelados subsidiados por construtoras, como no Real Parque, em São Paulo) ou de virar satélite de Governos que cooptam movimentos em troca de uma sustentabilidade sem dignidade, que não leva a lugar algum.
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A mídia livre tem que ser livre mesmo, e isso implica não fazer concessões de qualquer ordem para que não se veja , de uma hora para outra, no colo de corporações que têm como objetivo obter o silêncio e a cumplicidade de grupos organizados, salvando a própria pele. Há mídias aparentemente independentes, mas, que no fundo, servem a determinados interesses. Os exemplos ocorrem aos montes: uma mídia, que se diz ambiental, com páginas verdes para o Blairo Maggi, tentando vender a sua "visão sustentável"; mídias rurais com um discurso contrário aos agrotóxicos e recheada de anúncios da Monsanto, da Bayer e da Syngenta (as gigantes da biotecnologia são também as gigantes do veneno, você não sabia?); uma mídia comprometida com a saúde fazendo propaganda descarada da indústria da saúde (o FDA está sob suspeita!); ou uma mídia "cidadã" patrocinada por montadoras que estimulam a velocidade (que mata milhares de jovens anualmente), e fazem um recall por semana (só neste momento, a Volks e a Nissan confessam ter um discutível controle de qualidade) e assim por diante.
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A mídia livre deve, sobretudo, perceber as relações daqueles que a patrocinam com a mídia que aí está. Será interessante observar como reagiria a Petrobrás (que assina o site Fórum Mídia Livre) se fosse objeto de críticas oriundas deste movimento, já que, em outras oportunidades, não conseguiu, democraticamente, engolir as opiniões contrárias (a maioria justas) que os jornalistas a ela endereçaram. Não se pode ignorar que a gigante estatal anda bancando com suplementos caríssimos a mídia tradicional, que em troca garante a ela espaços generosos em suas editorias de economia (A Petrobrás tem horror a editorias de política e mais ainda de meio ambiente porque são nestes lugares que pipocam as suas vulnerabilidades).
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A mídia livre não deve ser apenas uma reação aos monopólios da comunicação, mas praticar a independência e uma voz vigilante contra todo tipo de monopólio porque são os monopólios (do petróleo, das sementes, dos fertilizantes e agrotóxicos, das construtoras, dos produtos agrícolas etc) que sustentam esta voz uníssona a favor dos privilegiados deste País, numa relação competentemente arquitetada para favorecer o capital financeiro e os grandes investidores. Precisamos de uma mídia efetivamente livre, independente, de cabeça erguida. Que não encampe, como a mídia que temos por aqui, campanhas cínicas em favor da liberdade de expressão, como a que hoje reúne grandes agências de propaganda e comunicação, monopólios televisivos, entidades de auto-regulamentação (muitas não passam de fraudes institucionais a serviço dos privilégios que proclamam combater) para impedir que a sociedade discipline os abusos de fabricantes de bebidas, montadoras, empresas de junkfood, laboratórios farmacêuticos etc. A mídia livre tem que ser livre em todos os sentidos. Não pode ser livre com moderação.
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(*) Wilson da Costa Bueno é jornalista, professor da UMESP e da USP, diretor da Comtexto Comunicação e Pesquisa. Editor de 4 sites temáticos e de 4 revistas digitais de comunicação.
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