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quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

A família fala de si, e do jovem

Hebe Signorini Gonçalves (*)
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Dados de pesquisa acerca da violência familiar no Brasil sugerem que o espaço doméstico não é caixa de ressonância, mas lugar organicamente articulado ao social, recebendo sua influência e produzindo efeitos sobre ele. O discurso de trinta mães indica o uso amplo da punição corporal com propósitos disciplinares. As entrevistadas defendem essa prática quando regulada por limites ditados pela cultura. A essas formas punitivas, aplicadas segundo os parâmetros que as regulam, as mães recusam dar o rótulo de violentas. Elas discordam, assim, da interpretação dominante que atribui ao uso da força física um efeito pernicioso na formação e no desenvolvimento de crianças e jovens.
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Para efeito deste texto, é importante destacar os motivos que, do ponto de vista das entrevistadas, justificam o uso da punição corporal. Adotada como recurso extremo, ela é empregada em situações nas quais a criança ou mesmo o jovem, apesar de advertidos, insistem na desobediência ou no desrespeito aos pais ou mesmo aos mais velhos com os quais mantêm relações de parentesco ou vizinhança. As mães entendem que a obediência à hierarquia entre as gerações é o pilar nas relações sociais, pois é o respeito ao próximo que produz o assujeitamento necessário à transmissão de valores e à formação do caráter.
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Mais preocupadas com a violência na rua do que com os excessos disciplinares domésticos, as mães entrevistadas nomeiam uma violência que está em todo lugar e faz com que se mate por um real, ou por nenhum. Elas invocam a atração que a marginalidade fora de controle exerce sobre o jovem e o apelo contemporâneo pela afirmação da singularidade e da diferença como armadilhas da convivência entre estranhos, características incontornáveis da vida na cidade. Reconhecendo que é impossível negar a liberdade, e que seus filhos cedo ou tarde serão confrontados com os desafios da cidade, as mães entendem que a tarefa de educar tem como propósito central a boa formação, o caráter, a cabeça forte.
. Essas expressões condensam sentidos: a boa formação não se restringe à obediência no espaço doméstico, mas fala principalmente do comportamento adequado na rua, que abarca as relações respeitosas para com os mais velhos, a escolha adequada das amizades, o empreendimento de esforços na escola, a esquiva dos grupos envolvidos com drogas, criminalidade ou qualquer forma de violência. A relação dos problemas a serem evitados indica a preocupação das mães com a reconstrução da sociabilidade no espaço público. Indica, além disso, que assumem como sua essa tarefa; a frase de uma das entrevistadas não deixa margem a dúvida: as pessoas que estão na rua, violentando, atacando as pessoas, ela tem uma criação, né, então começa em casa. Se você cria seus filhos na paz, eles vão sair lá fora e não vão atacar ninguém.
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Haveria elo de ligação entre a criminalidade urbana e a violência familiar? Com base em dados produzidos nos Estados Unidos, Gelles (1997) afirma que tanto o comportamento violento como a conduta criminal são conseqüências comprovadas do abuso sofrido na infância. No Brasil, essa associação é posta em dúvida pelas mães que entrevistei. No primeiro momento, elas negam qualquer conexão com base em suas histórias pessoais: se fosse assim - declarou uma das mães -, eu também tinha sido bandida. A seguir, elas invertem a relação causal e afirmam que a punição corporal, aplicada quando requerida, contribui para forjar o caráter, tarefa doméstica por excelência: abandonado, o mundo ensina. [...] se a gente largar assim demais, é o mundo que vai ensinar. E o mundo vai ensinar errado.
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Não deixa de soar estranha essa crença na possibilidade de controle da desordem urbana a partir do doméstico. Durante longo tempo, essa justificativa para a defesa da punição corporal foi interpretada como mero argumento para validar a prática dos castigos físicos, essa sim condenável. Mas o julgamento moral precipitado dessa linha de argumentação tem furtado ao exame os fatores que informam a inclinação da família brasileira pelo uso da punição corporal. Trata-se de um procedimento que não é gratuito, nem espontâneo.
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Ele tem origem nos preceitos higienistas, que associaram a disciplina doméstica ao controle dos sujeitos no espaço público. Lopes Trovão proclamava a infância como o período em que se forja "a gênese da humanidade mais perfeita". Belisário Penna via na educação doméstica o dispositivo capaz de assegurar a ordem sem o uso da força. Para Lourenço Filho, a educação doméstica - mais até que o Estado - seria capaz de "guiar as liberdades" das crianças de modo a evitar "escolhas passionais e caprichosas" (cf. Corrêa, 1997). Repetindo esses princípios à exaustão, o higienismo ensinou que a lógica do universo familiar e a lógica da cidade se fundem numa ligação de simbiose e dependência da qual a relação mãe-filho é adubo e semente (cf. Costa, 1989). Até os anos de 1930, o higienismo incutiu a crença de que à mãe cabe evitar o ócio, a delinqüência e o vício da rua. Hoje, setenta anos mais tarde - ou no espaço de duas gerações -, as mães flagram-se isoladas nessa tarefa, sem contudo renunciar a ela.
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Sem contar com a orientação de ninguém, confiando no vivido para tomar decisões cruciais no cotidiano, as mães oferecem os elementos que permitem compreender a permanência da racionalidade higienista. Em vez da família moderna acossada pelos técnicos, sitiada pelo saber da ciência e destituída da função de educar, típica das sociedades centrais (cf. Lasch, 1991), a mãe brasileira queixa-se sobretudo da solidão, da falta de amparo e de assistência. Assistindo impotente ao crescimento da criminalidade, ela crê que pode proteger seus filhos das ameaças do público, e acredita na possibilidade de disciplinar o social a partir do doméstico.
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Entende-se assim por que a família brasileira se mantém como elemento central nos processos de regulação social. A despeito da eficácia questionável das práticas educativas, é mister reconhecer que elas empreendem um esforço em nome do coletivo. A despeito da condenação moral dessas práticas, amplamente calcadas na punição corporal, é mister reconhecer também que seus filhos, ao ecoar suas frases e expressões e ao anunciar a família como único suporte com que contam, contribuem para referendar sua crença e imprimir-lhe algum grau de eficácia.
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(*) Doutora em Psicologia, integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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FONTE: http://juventudesulamericanas.org.br

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