Juventude brasileira: tradição e modernidade (parte 1)
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Hebe Signorini Gonçalves (*)
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O individualismo tem sido afirmado como marca da sociedade contemporânea. A ele se submeteriam todos os protagonistas sociais, em particular os que vivem e circulam nas grandes metrópoles, açodadas pela competição e pelo consumo. Segundo esse modelo de análise, a sociedade do espetáculo, para usar o termo cunhado por Guy Debord, impõe subjetividades e forja modos de pensar, sentir e agir, sobretudo entre os jovens, segmento etário tido como o mais vulnerável aos apelos do individualismo.
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A juventude, na visão clássica, é entendida como "uma categoria social gerada pelas tensões inerentes à crise do sistema" (Foraccchi, 1972, p. 160); estudos contemporâneos reafirmam seus excessos pulsionais (cf. Souza, 2005) como motores da construção das formas pelas quais o jovem se apresenta à sociedade. A primeira visão acentua o conflito e a busca pela experimentação; a segunda encaminha a postura individualista e narcísica, considerada típica da sociedade e da juventude contemporâneas.
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O interesse pela juventude desponta de tempos em tempos, mas parece contaminado sempre por esses motores. As crises e os excessos, os conflitos e as explosões que a eles se seguem, acompanham a história da preocupação social e acadêmica com a juventude. Os anos de 1920 presenciaram a explosão desse interesse na razão direta da comoção gerada pela turbulência social em Chicago; naquela época, toda uma geração de jovens italianos, judeus, irlandeses e afro-americanos tornou-se objeto de estudos da sociologia, em busca de uma resposta às indagações acerca de possíveis "implicações entre juventude, violência, criminalidade e desorganização social urbana" (Zaluar, 1997, p. 18)1. Premidas nos anos de 1920 pelas lutas das gangues, nos anos de 1950 pela explosão demográfica nas urbes e mais recentemente pelos elevados índices de disseminação das doenças sexualmente transmissíveis, as ciências humanas privilegiaram o exame da juventude sob a ótica do negativismo.
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Os excessos juvenis, tomados como impulso da desordem urbana, colocaram em movimento esforços de disciplinarização. Associadas aos comportamentos disfuncionais, as pulsões da juventude tornaram-se foco da assepsia social que queria o controle e a correção dos vícios, e nesse percurso as ciências reforçaram ao longo dos anos a percepção de que boa parte das mazelas sociais poderia ser creditada na conta da juventude e de seus anseios de diferenciação. Firmou-se no imaginário social a associação entre a juventude e as grandes questões de cada tempo: no século XXI, quando grassam as preocupações com o individualismo exacerbado e a criminalidade crescente, o jovem emerge como individualista e responsável, em grande parte, pela criminalidade urbana.
.O vínculo entre juventude e criminalidade, estabelecido pelo funcionalismo nos anos de 1920, pode ser identificado ainda hoje em textos que falam da modernidade, da globalização e da violência na vida das metrópoles, propugnando um modelo de controle da criminalidade pautado pela atenção aos pequenos delitos e aos jovens transgressores. Os textos de Wacquant (2001) ilustram bem o modo como o controle social persegue, ainda hoje, o ideal funcionalista.
.Mas a multiplicidade de vivências, a diferença no desenho das cidades e as formas díspares de organização comunitária, sobretudo no Brasil, não autorizam supor a hegemonia de modelos, nem do ponto de vista da criminalidade juvenil - esta mais questionada por dados que demonstram seus equívocos -, nem do ponto de vista da preponderância do indivíduo narcísico e desenraizado. Como nossos jovens vêem a si mesmos? Como lidam com suas dificuldades, e de quais estratégias e laços sociais lançam mão para ascender ao mundo adulto?
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Começam a despontar algumas críticas à hegemonia do modelo do sujeito marcado pelo individualismo. Questionando a natureza totalizante dessa representação, Amorim (2002) argumenta que o individualismo equivale ao mito no mundo clássico, pois orienta e organiza percepções de mundo, numa denúncia de que ele faz circular representações sociais que contribuem para produzir o que anuncia. Mais radical é Duarte (1983), para quem o individualismo poderia ser considerado a religião do mundo contemporâneo.
.Segundo Boaventura Souza Santos, os fenômenos correlatos da globalização não dão conta das questões mais prementes com as quais se batem as sociedades periféricas. Nas ditas sociedades centrais, a globalização sucede a um Estado forte, capaz de organizar a cultura e de oferecer ao indivíduo uma referência institucional, portanto pública. Esse modelo serve às nações européias, mas não a Portugal, nem tampouco ao Brasil, países em que o espaço doméstico tinha e tem um forte poder de regulação social; em ambos, é o doméstico que ancora o público e supre muitas de suas funções.
. (*) Doutora em Psicologia e integrante do Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa e Intercâmbio para a Infância e Adolescência Contemporâneas, do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
. FONTE: http://juventudesulamericanas.org.br
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